domingo, 17 de abril de 2011

Direitos de Filhos e Pais

Direitos de Filhos e Pais
Autor: Fernanda Roche / CRP 08 / 09053

            A começar pelo título: direito de filhos e pais! 
            Historicamente sempre se discorreu, popularmente e na esfera jurídica, sobre os direitos dos pais em relação aos filhos. Atualmente, as transformações sociais vêm refletindo diretamente nas relações familiares, trazendo, entre tantas outras conseqüências, o crescente número de dissoluções de vínculos conjugais. Dentro deste novo contexto, os genitores não mais se enquadram dentro dos modelos das famílias patriarcais, onde os papéis eram bem delimitados. O antiquado papel socialmente imposto aos casais, que reservava à mulher a tarefa de educação dos filhos e cuidados da casa e ao homem o encargo do sustento da família, das decisões, isto é, quando era o chefe da família, está aos poucos desaparecendo. Neste tempo não lhe cabia desempenhar cartas funções, hoje inerentes ao modelo de pai adequado. Este entendimento da nova ordem social e de organização familiar tem dado lugar a uma forma mais equilibrada de exercício do poder nas relações familiares e cada vez mais tem se falado em cuidar do atendimento do melhor interesse dos menores envolvidos e da igualdade dos genitores. A prática, contudo, ainda segue um tanto distante da teoria. Quero destacar aqui, para não a perdermos de vista durante a nossa reflexão, a questão do melhor interesse das crianças.
Este artigo tem o objetivo de destacar a importância da figura paterna, invariavelmente excluída do cotidiano das crianças, nos casos de dissolução conjugal, mudando-se inteiramente o foco: é preciso, com urgência, reconhecer que, talvez ainda mais que os pais tenham o direito de conviver com maior freqüência com seus filhos, são as crianças que têm o direito de visitar seus pais, de manter com estes um vínculo de confiança, incrementado pela convivência freqüente.
Dispõe a Declaração Universal dos Direitos da Criança, tratado internacional do qual o Brasil é signatário, que o direito da convivência entre pais e filhos separados e a igualdade na responsabilidade de criação dos filhos pelos pais devem ser respeitados:
Artigo 9 – A criança tem o direito de viver com um ou ambos os pais exceto quando se considere que isto é incompatível com o interesse maior da criança. A criança que esteja separada de um ou ambos os pais tem o direito a manter relações pessoais e contato direto com ambos os pais.
Luis Otávio Sigaud Furquim comenta que a convivência com ambos os pais é fundamental para a construção da identidade social e subjetiva da criança. A diferença das funções de pai e mãe é importante para a formação dos filhos, pois se trata de funções complementares e não implicam na hegemonia de um sobre o outro. É importante salientar que quando o casamento termina, cessa apenas a relação de conjugalidade, mantendo-se então, a relação de parentalidade, que vai ser exercida e compartilhada entre pais e filhos, para sempre.
 A maior perda, vivida pelas crianças em relação a seus pais, no caso de dissolução dos vínculos conjugais, é a perda da companhia imediata do pai. Os pais envolvidos com seus filhos sofrem, com a falta do dia-a-dia com seus rebentos, mas por sua condição de maior maturidade, acabam por criar mecanismos mais toleráveis de resolução destes conflitos; já as crianças, em fase de construção de personalidade, de descobertas, observação e aprendizagem através dos modelos paternos, perdem, entre tantas outras coisas, a oportunidade única de aprenderem a ser, verdadeiramente, pais presentes no futuro. 
 Quando o casal dissolve seu casamento, mágoas e rancores não digeridos são diluídos nas decisões acerca da convivência em visitas, viagens, com um maior prejuízo recaindo sobre as crianças que não possuem, por assim dizer, direito de defesa.
Aqui se faz necessário um recorte para que seja verificado o contexto histórico no qual esta situação foi gerada. 
 Historicamente, as crianças vinham sendo entendidas como um vir-a-ser, sem desejos próprios nem direitos específicos. Havia, até o século XVII, a justificativa desta mentalidade pelo alto índice de mortalidade infantil, que não contribuía para que se pensasse a infância como uma etapa em si, com direitos e deveres próprios, mas como uma fase em que as crianças deveriam ficar à espreita das decisões e caprichos dos adultos que os detinham sob seu poder. Após o movimento higienista do séc XVIII, quando as crianças começaram a sobreviver para além dos sete anos de idade, justificaram-se as iniciativas voltadas à infância e o fortalecimento de políticas públicas e estruturas pedagógicas. Hoje a criança precisa ser entendida como sujeito de seu processo histórico. Mas apesar de passados longos anos desde então, ainda perdura, em nossa sociedade, a ingênua noção de que criança não entende as coisas, não sabe o que é válido para si, justificando-se assim a dificuldade de escutar e respeitar os desejos tão claramente demonstrados por elas. Hoje, crianças de dois anos de idade contam a seus pais o que gostam e o que lhes traz prejuízos, bastando apenas que estes o escutem atentamente, com o coração aberto, desvinculados de dificuldades ou interesses pessoais.

Esta breve contextuação histórica se fez necessária para situar crianças vítimas de disputas judiciais, que são impedidas de conviverem com seus genitores de sexo masculino com maior permanência, intimidade, possibilidades de identificação, sem que sejam levadas em conta as fases de desenvolvimento pelas quais atravessam. Segundo Eliana Giusto, “muitas pessoas, dentre as quais julgadores, procuradores e promotores nasceram e cresceram sob a égide deste antigo modelo de pai e trazem consigo as marcas indeléveis desta educação. Isto fatalmente se reflete na maneira de conduzir e de julgar as ações que tramitam na esfera do Direito de Família, apesar das fortes correntes atualizadoras que aí podem se identificar.” 
As crianças de até seis anos de idade precisam formar em sua mente a imagem de mãe e pai, para que possam iniciar seu processo de subjetivação e de identificação pessoal. Todo o processo edipiano, que se inicia aos dois anos e que vai desembocar numa maior chance de vínculos afetivos maduros e sexualidade saudável, não pode prescindir de uma figura paterna palpável, imitável. Pais que tenham disponibilidade amorosa para permitir esta identificação deveriam ser incentivados e não privados desta convivência mais freqüente. 
    Conforme Adriana Fasolo Pilati Scheleder, Beatriz Helena Braganholo e Patrícia Grübel:
“Esclarece-se que são dois os bens tutelados: primeiro o direito do filho à convivência assídua com o pai, assegurando-se o bom desenvolvimento e formação mental, física, social e espiritual; segundo, o direito dos pais de continuidade da convivência, mantendo permanente os laços afetivos familiares.
A relação afetiva entre pais e filhos não deve ser confundida com a relação conjugal dos genitores. Neste contexto, há a consagração da manutenção da unidade familiar, ou seja, o exercício do poder familiar é um direito e um dever, preponderante a qualquer situação que diga respeito aos pais, pois, após a separação, o que deve ser reformulado é o estado conjugal e não o parental.”

O que se verifica na psicologia clínica é que a criança sente que perde por um lado, mas também sente que ganha dois lugares diferentes onde passa a ter seu espaço garantido, amor incondicional e um pouco de si mesmo estável em cada ambiente. A criança, desde muito pequena, que é impedida de conhecer onde seu genitor vive, sua realidade e seu ambiente, sente muito mais dificuldades em lidar com esta perda. E conseqüentemente, sente muito mais injusto e incompreensível o fato de não poder ver, explorar, conhecer o lugar para onde seu pai se mudou. Como na fase de desenvolvimento que vai até os quatro anos de idade, fase dita autocentrada, a criança acredita que o mundo gira ao redor das suas necessidades, falhas ou acertos, acaba por construir fantasias de que o pai não a quer mais por perto, por algum motivo que tenha porventura provocado, o que implicará em enorme prejuízo em sua auto-estima. Especialmente para crianças pequenas, bem pequenas, com pouca ou quase nenhuma capacidade de abstração, é ainda mais importante ver do que ouvir falar.
Segundo o estudo feito por Shaienne Mattar Gobbi:
“Acreditar que a criança vá perder o referencial do lar é um equívoco. O referencial a não ser perdido é o dos pais. A criança filha de pais separados vai adaptar-se à nova vida, criará o vínculo com duas casas. O grau de intimidade da criança com os pais garantir-lhe-á segurança e permitirá que ela tenha experiências para além da extensão do lar.”
Não obstante o fato de que o processo de separação ficaria mais elaborado emocionalmente pelas crianças envolvidas, as perspectivas futuras estariam bem mais encaminhadas.
O psicanalista canadense Guy Corneau, que aborda o tema na excelente obra “Pai ausente, filho carente”, cita outro profissional da área, Dr. Hubert Wallot, médico e professor da Universidade de Quebec, que assinala importantes e alarmantes dados estatísticos:
“...na proporção de quatro pra um, os homens sofrem de alcoolismo e toxicomania, igualmente predominam as proporção de três pra um em suicídios e comportamento de alto risco. Finalmente, também são em número superior em esquizofrenia. E o médico conclui que a ausência freqüente do pais e de modelos masculinos junto à criança parece explicar certas dificuldades de comportamento ligadas à afirmação da identidade sexual do homem (pp 11/12)”.
Mais adiante, na mesma obra, analisando sempre a função do pai, o autor refere:
“Os filhos que não receberam uma ´paternagem` adequada enfrentam com freqüência os seguintes problemas: na adolescência tornam-se confusos quanto a sua identidade sexual e muitas vezes apresentam uma feminização do comportamento; falta-lhes amor próprio; reprimem sua agressividade e, com ela, sua necessidade de afirmação, sua ambição e sua curiosidade exploratória. Alguns podem sofrer bloqueios relativos à sexualidade. Podem também ter problemas de aprendizagem. Demonstram muitas vezes dificuldades de assumir valores morais e responsabilidades em desenvolver o senso do dever e de obrigação em relação ao outro. Ausência de limites se manifestará tanto na dificuldade de exercer a autoridade, quanto na de respeitá-la; finalmente, a falta de estrutura interna ocasionará certa fraqueza de temperamento, ausência de rigor e, em geral, complicações na organização da própria vida. Além do mais, as pesquisas indicam que têm maior propensão ao homossexualismo do que os filhos cujos pais estiveram presentes (p.30).”
Diante dos comentários citados, pode-se ter uma idéia das graves conseqüências decorrentes da ausência da figura paterna durante o desenvolvimento estrutural da criança e ainda da enorme responsabilidade de todos os envolvidos com esta questão na esfera judicial. Mas é preciso reconhecer que, na maioria das vezes, é a própria mãe a maior responsável pelo bloqueio desta convivência ou de sua facilitação. Venho relembrar, aqui, a importância de se levar em conta a questão do melhor interesse das crianças. E marcar que o tempo que leva uma lide judicial para ser ultimada corre na contra-corrente do bom senso, pois todo o sofrimento absorvido pelos filhos, certamente culminará em prejuízos irreversíveis de ordem psicológica. É aí que os interesses dos pais se confrontam com os dos filhos. É preciso muito cuidado para que o lado mais fraco, invariavelmente o das crianças, não saia debilitado. E que com este esforço em conjunto de pais e da nossa estrutura judiciária tenhamos no futuro adultos cada vez mais conscientes de suas responsabilidades.
      

Fernanda Roche é Psicóloga clínica, especializada em Educação Infantil e Coordenadora Geral do Espaço de Desenvolvimento Criança em Foco (PR/RJ).

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